domingo, 27 de abril de 2014

rabiscos à procura de coisas

Achamo-nos espectadores da paisagem, mas é antes a paisagem que nos espreita.
Esta aqui tem sido o meu espectador devoto, tem assistido ao meu enredo há já alguns anos num empenho admirável, num comprometimento que torna improvável, às persianas, o simples acto de pestanejar. As janelas apontam-me os olhares de esguelha, discretos mas dedicados, alguns reforçados em pares poligâmicos, como que num desespero que me pede que as entretenha, que isto de ser janela e estar presa aos muros às vezes é uma chatice.
E como um espectador que se preze se entrega inteiramente ao que está a ver, quis assim ele - o espectador, ou ela - a paisagem, levar-me dali. Se ficarmos muito tempo a olhar para as coisas, elas conseguem levar-nos do sítio onde estamos.

O tempo queria parar na hora de jantar, mas eu não o deixei e ele não se importou. O tempo às vezes pára para resfolegar: quando vemos histórias ou quando olhamos para paisagens. É por isso que existem narrativas. É porque o tempo precisa de descansar.
Repousámos os dois numa janela de pupilas dilatadas de noite e reparámos que afinal éramos três, que o seu par havia prendido uma outra menina.
Consta que o aborrecimento andava a tentar entranhar aquelas casas; o aborrecimento às vezes pensa que gostava de ser humidade e faz-se passar por ela; e quis assim a paisagem intervir na intriga da sua narrativa predilecta na esperança de o espantar, misturando prolepses e analepses - ou outras coisas quaisquer, é difícil saber a ordem das coisas quando o tempo folga em janelas.

A menina era bem mais pequenina do que eu, trazia um vestido às flores que era a túnica desbotada que eu levava no corpo. Isto quer dizer que não era amiga do tempo há tantos anos, mas mais uma vez, essas coisas não importam quando ele folga em janelas.

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