terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

um título qualquer tipo ''tenho os pés frios''

Na pontinha, mesmo no fim do dia de ontem lembrei-me que há coisa de um ano tinha uma espécie de diário, e resolvi fazer-lhe uma visita, já não escrevia coisas assim esquisitas, parvas e ao molho há uns tempos, devia estar psicologicamente enbriagada ou assim, acho eu. Não é que não goste do caderno, é um caderno preto, e gostava muito dele, só que a minha mãe adorava abri-lo de vez em quando, e o pior é que corrigia os erros ortográficos com uma caneta por cima, mesmo a dizer ''eu estive aqui!''. Não tem piada. E foi assim que me deixei disso.


‘’Lembrei-me que em miúda era especialmente friorenta. Eu era frio no inverno e no verão. E ao mínimo descuido, constipava-me. Hoje não sou, reparei. Porque o meu quarto está gelado, dizem, e eu estou aqui na mesma. E, sincerely, ainda procurei, mas não, não vejo esse frio em lado nenhum. A sala sim, está muito quente, e eu não quero calor agora, que o calor faz barulho. Estranho, mas agora quero muito estar aqui, e muito tempo, não no frio, mas no fresquinho, e no silêncio, quero-me ouvir a mim, quero ouvir o que este lápis tem para me dizer, mesmo com este candeeiro que eu mal consigo ver a berrar com os meus olhos, nesta escrivaninha de madeira velha e desarrumada por natureza que eu tenho desde miúda, com riscos , tintas e arranhões que o planisfério se esforça por tapar.

O vento anda aí hoje. Furioso, faz-se ouvir, e berra comigo. Por eu ter deixado a manteiga fora do frigorífico a noite toda ou para o ir ajudar a fazer qualquer coisa. E eu retenho todos os gritos dele, e já não são só os meus olhos que encolhem, eu encolho com eles. Parecemos esponjas. O vento é muito agudo e muito forte, assalta-me, entra-me e mexe comigo porque fiz algo de errado, tenta deitar-me ao chão e eu não me sei defender.
E pronto, é assim. Pego num lápis só porque sim, porque é novo, grande e tem o bico afiado, e começo a riscar por riscar. No meu caderno das parvoíces. E começo a achar que me vejo nas palavras que escrevo e que estes rastos sonoros de grafite são tanto eu como são os meus dedos e como é a minha voz. Engano-me? Ou é isto mesmo a continuação dos meus dedos e da minha voz?

No fundo acho que só gostava de tirar os fantasmas da minha cabeça, um por um, e de os pendurar, com molas, nestas linhas, como se fossem estendais. De os deixar escorrer, de os ver correr num texto. Se o soubesse fazer.

...

A propósito de nada, um aparte, eu acho que as pessoas têm a mania de se entregarem em demasia a determinadas coisas ou a determinadas pessoas, e não deviam, não deviam porque é um bocado como apoiarem-se em pilares não seguros, em muros construídos de fresco e pouco solidificados, que se desfazem só com o peso dos cotovelos, e depois caem de cu no chão e não é bom. Porque ao falhar-lhes essa coisa, acaba por lhes falhar tudo. E a culpa é delas por atribuírem o peso de ‘’tudo’’ numa ‘’coisa’’ jamais capaz de suportar um ‘’tudo’’. São burras e a culpa não é do muro, ninguém lhes mandou meter lá a pata, ninguém lhes disse que aquilo algum dia tinha que ser qualquer coisa como a bengalinha, o apoio, o suporte da vida delas.

Aprendo a ignorar o vento, esqueço o tempo, adormeço numa manchinha verde escura de tinta que suja, com outras, e com prazer, a minha escrivaninha há anos. Adormeço aqui porque a minha vista já saturada de vermelho e zangada com a luz do candeeiro fugiu para fora de mim, e levou com ela a noção consciente do que eu estava a fazer. Se é que estava a fazer alguma coisa. Dou passos naquela manchinha sem querer ir a lado nenhum, e não encontro nada, só a espera que chegue alguma coisa para me acordar... Se é que eu preciso de acordar... Se é que estou mesmo a dormir... Não consigo nem perceber se tenho sono ou não.

Eu sei que só pego em ti quando não tenho mais nada. E que te uso e que te faço engolir as minhas palavras quando me apetece. É egoísmo e ingratidão que tu, caderno, carregas sem protestar. Não vou pedir desculpa. Revolta-te e ignora-me tu também, és quem mais motivos tem para o fazer. Vou-te deixar e vou-me deitar, ''que o meu mal deve ser sono.'' Porque amanhã já é terça. E a seguir já é quarta. Finalmente quarta. Depois, se quiseres, conto-te como correu quarta. E quinta... quinta o despertador vai tocar outra vez. Preciso da rotina, preciso tanto...''

A propósito, isto das pessoas falarem com objectos inanimados é uma doença e tem um nome...

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