abres aleatoriamente um livro de trezentas e tal páginas e não te lembras de tê-lo escrito.
"213
Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha
imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora.
Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que
assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis
escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles
me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse,
e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora
despertado como de um sono alheio.
É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem -
trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de
expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas
frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha
adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e
por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje
num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o
mesmo que hoje sou.
Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.
Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu
passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo,
pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu,
muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado.
Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era?
Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num
labirinto onde, comigo, me extravio de mim.
Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi.
Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo
das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida
anterior que seja apenas desta vida...
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é
este intervalo que há entre mim e mim?
214.
Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual haviam
passado já quinze anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto com
franceses, nunca tive exercício, portanto, daquela língua, de que me houvesse
desabituado. Leio hoje tanto francês como sempre li. Sou mais velho, sou mais 125
prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse trecho do meu passado
longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje não possuo; o estilo é
fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há trechos inteiros, frases
completas, formas e modos de expressão que acentuam um domínio daquela língua
de que me extraviei sem que me lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A
quem me substituí dentro de mim?
Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas,
compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é
uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há
outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há
o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da
idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento -
tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio
como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?
Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito - o que é
pouco para pasmar -, mas que nem me lembro de poder ter escrito - o que me
apavora. Certas frases são de outra mentalidade. E como se encontrasse um retrato
antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas -
mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu."
Bernardo Soares, o intranquilo ajudante de guarda-livros
Livro do Desassossego
sexta-feira, 16 de maio de 2014
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